Em 2000, publiquei pela Editora Canaã uma revista chamada Como desenvolver roteiro para mangá. Era o número 13 da coleção Curso Básico de Mangá, que fez algum sucesso em bancas. Em 32 páginas, eu dava dicas de produção de roteiro, tendo em mente algumas características da narrativa do mangá. O texto introdutório, um resumo sobre o que eu acho que define uma HQ como sendo mangá, acabou incluído em minha coletânea, o Almanaque da Cultura Pop Japonesa.
O assunto sempre vem à tona, seja em palestras ou oficinas. A maioria das pessoas tem uma visão equivocada sobre o mangá e sempre respondo sobre isso em cursos, oficinas e palestras. Por isso, resolvi republicar o texto aqui, esperando que seja uma referência útil aos leitores deste blog.
A NARRATIVA DO MANGÁ
O JEITO JAPONÊS DE CONTAR HISTÓRIAS
As pessoas costumam associar o mangá (quadrinho japonês) a figuras de olhos grandes, cabelos espetados e coloridos, robôs, samurais e monstros. Tudo isso realmente faz parte do universo do mangá, mas não é o que melhor traduz o que é o mangá. O que mencionei agora tem a ver com uma escola de artes gráficas, inserida no gosto médio da maior parte do povo que consome e faz mangá. São estereótipos visuais, padrões estéticos, nada mais que isso. Mas o que muita gente deixa escapar ao folhear um gibi japonês é uma coisa sutil, que foi arduamente pesquisada pelo pioneiro do moderno mangá Osamu Tezuka e foi aperfeiçoada ao longo dos anos por talentosos artistas.
Trata-se da narrativa, aquilo que liga um quadrinho ao outro e dá ao leitor o entendimento da história no ritmo e no tempo pretendido pelo autor. É algo que somente quem se preocupa em contar uma história e não em exibir ilustrações percebe e sabe usar. A grande maioria dos artistas de fora do Japão (como brasileiros e americanos) que diz fazer mangá ou seguir suas influências, o faz sem a noção da tal narrativa de mangá. Geralmente, fazem suas histórias motivados pela admiração a animes (os desenhos animados), sem nunca terem sido leitores assíduos de quadrinhos em geral. Usam visuais característicos (olhos grandes e cabelos espetados) e símbolos gráficos igualmente característicos, como as dinâmicas linhas de ação desenhadas atrás de um personagem em movimento. Nada disso é mangá. Ou melhor: apenas isso não é mangá.
As diferenças são muitas, a começar por como a história é apresentada pelo autor a seus leitores.
Na escola narrativa dos quadrinhos japoneses, o narrador é pouco usado, sendo a narrativa mais visual do que no ocidente. Os diálogos são mais diretos e o ritmo flui de maneira mais suave. É uma abordagem mais cinematográfica e geralmente faz as situações se desenvolverem mais lentamente que nos quadrinhos ocidentais. Vale lembrar que no Japão são comuns as histórias com cerca de vinte páginas publicadas em grandes almanaques semanais, o que dá um bom espaço para ser explorado. Já no ocidente, episódios mensais são a regra geral. Com menos espaço, a narrativa ocidental tende a ser mais objetiva e direta que no oriente. Disso também depende a visão pessoal do autor, seus objetivos e gostos pessoais para que ele decida como aproveitar da melhor maneira a limitação quanto ao número de páginas.
Em outro exemplo da forma narrativa do mangá, uma cena de nascer do sol abrindo uma página, quando a anterior mostrava noite, pode dar facilmente ao leitor a idéia de que nasceu outro dia, sem a necessidade de se escrever o recordatório "No dia seguinte..." . Outro exemplo, agora com mudança de cenário, é abrir a página com um quadro que mostra por fora o ambiente aonde a ação seguinte irá se passar. Isso já basta para situar o leitor no novo cenário. Tal recurso de transição de tempo e espaço mostrada apenas visualmente é uma das grandes características do mangá. Sua origem é a linguagem cinematográfica. O formato e quantidade de quadrinhos numa página influem na percepção de tempo que o leitor tem. Por exemplo: uma cena pode ficar "congelada" por vários instantes se ela for mostrada em vários quadros, sendo que cada um mostra um plano de detalhe da cena e sem que haja movimentação.
Para cenas de combate, o mangá explora vigorosamente a variação de ângulos, bem como o formato dos quadrinhos. Existem momentos em que o ângulo de cena é simples e o desenho transmite tranquilidade. Em outros, o leitor sente suspense e expectativa, para em outros ainda, delirar com situações movimentadas e dinâmicas. Se um autor consegue lidar bem com o tempo, pode prender mais o leitor, que se divertirá tanto com o conteúdo como com a forma com que a história é contada. Tais sutilezas passam longe da maioria dos autores americanos, especialmente os adeptos da linha de desenhos de impacto da Marvel ou da Image Comics.
A narrativa de mangá, chamada assim para simplificar, é um conjunto de técnicas que visa um único objetivo: contar bem uma história.
- Texto publicado originalmente na revista especial Como Desenvolver Roteiro Para Mangá (Ed. Canaã, 2000) e republicado no Almanaque da Cultura Pop Japonesa (Ed. Via Lettera, 2007).
O JEITO JAPONÊS DE CONTAR HISTÓRIAS
As pessoas costumam associar o mangá (quadrinho japonês) a figuras de olhos grandes, cabelos espetados e coloridos, robôs, samurais e monstros. Tudo isso realmente faz parte do universo do mangá, mas não é o que melhor traduz o que é o mangá. O que mencionei agora tem a ver com uma escola de artes gráficas, inserida no gosto médio da maior parte do povo que consome e faz mangá. São estereótipos visuais, padrões estéticos, nada mais que isso. Mas o que muita gente deixa escapar ao folhear um gibi japonês é uma coisa sutil, que foi arduamente pesquisada pelo pioneiro do moderno mangá Osamu Tezuka e foi aperfeiçoada ao longo dos anos por talentosos artistas.
Trata-se da narrativa, aquilo que liga um quadrinho ao outro e dá ao leitor o entendimento da história no ritmo e no tempo pretendido pelo autor. É algo que somente quem se preocupa em contar uma história e não em exibir ilustrações percebe e sabe usar. A grande maioria dos artistas de fora do Japão (como brasileiros e americanos) que diz fazer mangá ou seguir suas influências, o faz sem a noção da tal narrativa de mangá. Geralmente, fazem suas histórias motivados pela admiração a animes (os desenhos animados), sem nunca terem sido leitores assíduos de quadrinhos em geral. Usam visuais característicos (olhos grandes e cabelos espetados) e símbolos gráficos igualmente característicos, como as dinâmicas linhas de ação desenhadas atrás de um personagem em movimento. Nada disso é mangá. Ou melhor: apenas isso não é mangá.
As diferenças são muitas, a começar por como a história é apresentada pelo autor a seus leitores.
Na escola narrativa dos quadrinhos japoneses, o narrador é pouco usado, sendo a narrativa mais visual do que no ocidente. Os diálogos são mais diretos e o ritmo flui de maneira mais suave. É uma abordagem mais cinematográfica e geralmente faz as situações se desenvolverem mais lentamente que nos quadrinhos ocidentais. Vale lembrar que no Japão são comuns as histórias com cerca de vinte páginas publicadas em grandes almanaques semanais, o que dá um bom espaço para ser explorado. Já no ocidente, episódios mensais são a regra geral. Com menos espaço, a narrativa ocidental tende a ser mais objetiva e direta que no oriente. Disso também depende a visão pessoal do autor, seus objetivos e gostos pessoais para que ele decida como aproveitar da melhor maneira a limitação quanto ao número de páginas.
Em outro exemplo da forma narrativa do mangá, uma cena de nascer do sol abrindo uma página, quando a anterior mostrava noite, pode dar facilmente ao leitor a idéia de que nasceu outro dia, sem a necessidade de se escrever o recordatório "No dia seguinte..." . Outro exemplo, agora com mudança de cenário, é abrir a página com um quadro que mostra por fora o ambiente aonde a ação seguinte irá se passar. Isso já basta para situar o leitor no novo cenário. Tal recurso de transição de tempo e espaço mostrada apenas visualmente é uma das grandes características do mangá. Sua origem é a linguagem cinematográfica. O formato e quantidade de quadrinhos numa página influem na percepção de tempo que o leitor tem. Por exemplo: uma cena pode ficar "congelada" por vários instantes se ela for mostrada em vários quadros, sendo que cada um mostra um plano de detalhe da cena e sem que haja movimentação.
Para cenas de combate, o mangá explora vigorosamente a variação de ângulos, bem como o formato dos quadrinhos. Existem momentos em que o ângulo de cena é simples e o desenho transmite tranquilidade. Em outros, o leitor sente suspense e expectativa, para em outros ainda, delirar com situações movimentadas e dinâmicas. Se um autor consegue lidar bem com o tempo, pode prender mais o leitor, que se divertirá tanto com o conteúdo como com a forma com que a história é contada. Tais sutilezas passam longe da maioria dos autores americanos, especialmente os adeptos da linha de desenhos de impacto da Marvel ou da Image Comics.
A narrativa de mangá, chamada assim para simplificar, é um conjunto de técnicas que visa um único objetivo: contar bem uma história.
- Texto publicado originalmente na revista especial Como Desenvolver Roteiro Para Mangá (Ed. Canaã, 2000) e republicado no Almanaque da Cultura Pop Japonesa (Ed. Via Lettera, 2007).
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